O Kora

12/05/2009

Antes de começar, confesso que ao final de todo o episódio a seguir, fui tomado por dois sentimentos bastante fortes: 1) o quanto os eventos na nossa vida podem até não parecer, mas são absolutamente cíclicos e, 2) o quanto podemos ser absolutamente míopes pra uma série de coisas que não fomos acostumados a olhar ou valorizar.

Eu me explico agora.

Tudo começou quando, na casa de um aluno, onde um dia fui dar aula, vi um estranho instrumento de cordas esquecido num dos cantos da sala. Nada que eu vira antes. Confesso que o meu interesse foi próximo do “0” pois a aparência geral também não depunha muito a favor dele: estava empoeirado e degradado. Um ligeiro interesse me fez saber que era africano e que estava lá havia umas duas décadas, desde quando um amigo da família tinha voltado da África com ele na bagagem e lá o deixou. Interpelado por meu aluno sobre o nome do estranho objeto, eu respondi, meio que sem graça, com um vago e não convincente: Eu vou olhar e acho pra você…

Bom, como esperado, a coisa parou por aí. Parei de dar aulas para ele e me esqueci completamente do episódio.

Tomado por sabe-se lá qual inspiração, muito tempo depois do ocorrido, acabei topando com o dito cujo do instrumento aqui na net e soube que seu nome era Kora e que era um instrumento típico da Guiné, de Guiné Bissau, do Mali, Senegal e Gâmbia. Soube também que nesses países é um instrumento típico das famílias de Griots, uma casta específica de artistas/intelectuais, correspondentes aos nossos antigos “bardos” ou “trovadores”, mas que lá são um misto de músicos ambulantes, poetas, rezadeiros, historiadores, genealogistas e contadores de história, responsáveis enfim pela guarda da “memória oral” do grupo ao qual pertencem, um cargo de grande honra. É uma função sempre herdada e passada de pai pra filho. Curiosamente, a palavra Griot (pronunciada à maneira francesa, sem o “t”) parece vir de uma leitura francesa do termo português “criado”, que revela o quanto esse profissional se liga intrinsecamente à comunidade e à sua cultura, servindo-as. 

Kora tradicional

Kora tradicional

Koras ocidentalizadas

Koras já ocidentalizados fabricados nos EUA

 

Bom, isso já havia bastado pra aumentar o meu interesse, quando, finalmente, ouvi o instrumento no youtube e fiquei completamente extasiado. Nossa, que som! Que maravilha!  Que delicadeza!

Pesquisando ainda mais sobre, eu percebi que apesar de ter toda a aparência de um violão, ou de um alaúde, trata-se de uma harpa em tudo o que esse termo carrega, ou seja, grosseiramente, cada corda produz um só som. Quando se examina melhor o instrumento, o “braço” nada tem a ver com o braço de um instrumento de cordas com trastes, como o bandolim, ou sem trastes, como o violino. O braço do kora é o cravelhame do instrumento, ou seja, a estrutura onde estão todas as “cravelhas” (nos instrumentos mais tradicionais, essas cravelhas são tiras de couro) e de onde partem as 21 cordas dessa harpa.

Estas 21 cordas, feitas tradicionalmente de linhas de pesca, dão ao instrumento uma extensão não contínua de 3 oitavas diatônicas e estão apoiadas sobre um grande cavalete (dentado, nos instrumentos tradicionais). É ele que transmite a vibração das cordas para a caixa ou corpo do instrumento que, na verdade, não passa de um grande tambor feito de cabaça, coberto por uma pele de boi fortemente esticada.

Na medida em que o músico tange as cordas com os dedos, sua vibração é transmitida ao cavalete e esse a transmite à pele sobre a qual está apoiado. A pele irá vibrar e fará com que o todo o ar que está dentro da cabaça vibre também. O resultado disso é uma amplificação bastante eficiente da vibração original da corda. Simples não? Rsr Sintam-se à vontade para olhar as figuras e deduzir por si mesmos.

Ressonador em forma de tambor, 21 cordas ao estilo “harpa”, cravelhame e cavalete, elementos bastante comuns e conhecidos se não fosse por dois detalhes que, ao meu ver, trazem toda a diferença e torna esse instrumento muito original e de uma praticidade quase desconhecida no universo instrumental ocidental: são eles o cavalete que é curiosamente duplo e a organização das cordas que se apóiam nele. 

O cavalete duplo do Kora tem um curioso formato retangular onde as cordas se apóiam lateralmente, ou seja, em vez de ficarem em cima dele como em um violino, ou desfilarem uma após a outra como em uma harpa regular, as cordas do kora estão dispostas de um lado e de outro no cavalete. Esse pequeno detalhe reduz em muito o tamanho do instrumento e o torna portátil e muito mais ergonômico. O executante, sentado de frente, ou com o instrumento no colo, usa apenas 4 dedos (!) para tanger as cordas, apenas a pinça de cada mão (dedão e indicador) para cada set lateral de cordas. Os outros três dedos de cada mão apóiam-se na varetas paralelas ao braço, sustentando o instrumento e também dando uma base firme às mãos.

Daí, a pergunta que aparece é: mas que raio de acordoamento é esse? Como as escalas estão organizadas nesse cavalete? E a resposta é menos óbvia do que parece, meu caro Sr. Watson: em zigue-zague!!!

Na verdade, o esquema geral é zigue-zague, mas há seções contínuas como mostra a figura abaixo afinada em dó (uma das possíveis afinações do instrumento):

Cavalete do Kora: a disposição contínua e em zigue-zague garante tríades laterais (ex. lat. direita: dó-mi-sol, mi-sol-si, sol-si-ré, etc), oitavas simétricas ao centro também rápidas escalas contínuas com a alternância dos dedos indicadores

Cavalete do Kora: a disposição contínua e em zigue-zague garante tríades laterais (ex. lat. direita: dó-mi-sol, mi-sol-si, sol-si-ré, etc), oitavas simétricas ao centro e também rápidas escalas contínuas com a alternância dos dedos indicadores

 

Esse esquema, aparentemente louco, traz uma série imensa de vantagens interessantes, mas, antes de tudo, corresponde à maneira em que se organiza a música (modal e não tonal) tocada no instrumento: um baixo imutável (manipulado pelo dedão esquerdo na parte superior esquerda), um acompanhamento (feito pelo dedão direito  na região superior direita e esquerdo na região médio-esquerda) e o solo (feito pelos dois dedos indicadores nas regiões logo abaixo, como indica a figura). Acreditem, tudo isso é possível sim e é impressionante o que apenas quatro dedos podem produzir no instrumento. Eu juro que depois de ouvir alguns bons executantes, percebi que o kora, com todo esse minimalismo, não deixa absolutamente nada a dever diante de nenhum instrumento ocidental do gênero harpa.

Bom, a música tradicional tocada no instrumento é de uma beleza rara. Deixo aqui uns vídeos pra vocês conferirem. Notem que muitas vezes aparece como um instrumento solista, mas na verdade, serve principalmente para acompanhar a voz. Como nos vídeos a seguir:

 

 

O executante mais famoso desse instrumento é o malês Toumani Diabaté. Admirador da música ocidental desde pequeno, ele levou o kora pra fora da África, fascinou multidões ao transformar seu instrumento em um instrumento versátil e universal, capaz de tocar de tudo, do rock ao jazz. Só pra vocês terem uma idéia, ele já tocou até com a Björk! Dele recomendo o lindo cd: The Mandé Variations (February 25, 2008) Nonesuch. 

 

 

Aqui, um grupo tocando jazz com kora:

 

Música mais etéria: 

 

Com todas essas informações na cabeça e ainda vídeos e CDs que puxei, confesso que fiquei muito fascinado e a vontade de ter uma kora bateu forte. Acabei me cercando de toda uma parafernália. Arranjei sites que ensinavam a construir, que davam medidas, que traziam figuras e experimentos diversos, mas notei que precisava de uma referência concreta. Foi nesse momento que recuperei na memória o episódio lá do kora velho e empoeirado esquecido no canto da sala da casa do Léo, meu aluno de flauta. Logo marquei de reaparecer por lá com um amigo que constrói instrumentos para examiná-lo e tirar umas boas fotos. O ensaio fotográfico foi delicioso, assim com a companhia de Guiomar, D. Dulce, Roberto Holz, Léo, Adma e o fofo do Gabriel, com quem degustei um amistoso lanche dominical. Confiram aí:

 

Léo com o Kora

Léo com o Kora

 

Olha a pose do garoto!

Olha a pose do garoto!

 

Direto da África.

Direto da África.

DSC00123

 

Olha eu aí!!

Olha eu aí!!

 

DSC00146

 

Companhias deliciosas.

Companhias deliciosas.

 

Estandarte

Estandarte

 

O sonho de ter um kora made in Brazil está mais do que de pé! Só estou penando pra achar uma dessas cabaças gigantescas (de 40 a 55 cm de diâmetro) que eles têm lá na África. Se souberem de alguma, please!! Aguardem as cenas dos próximos capítulos rsr.

Ahhhh! Para quem gosta de instrumentos “pluged”, não se desesperem! Há o Gravikord, que é basicamente um kora elétrico. Confiram o site oficial: http://gravikord.com/

Escrito e editado por Camilo Hernandez Di Giorgi em 12/05/2009